Qual o real poder dos Cristais

Qual o real poder dos Cristais

O misticismo que envolve os cristais não é recente. Tampouco convergente. Podemos encontrar relatos de que o uso da ametista, quartzo (SiO2) de coloração roxa ou lilás devido à pequenas quantidades especialmente de ferro, traz benefícios desde abrir chacras até desintoxicar quem mantém um destes cristais próximo ao corpo tempo suficiente. Já ao citrino, que também é quartzo com pequenas quantidades de ferro, porém de cor amarelada (ou alaranjada e até vermelha), é conferido o poder de aumentar a alegria, equilíbrio espiritual e atrair a prosperidade. Como dois cristais tão semelhantes podem ter propriedades tão diferentes? Apesar destas inconsistências parecerem interessantes de serem exploradas, o real poder dos cristais é na ciência, seja ela exata, biológica ou da terra. Vejamos alguns exemplos notórios de onde os cristais foram poderosíssimos.

Os cristais sempre fascinaram as pessoas, pois são formas naturais que apresentam faces, linhas retas, ângulos bem definidos e cores chamativas. Os primeiros passos para estudo dos sólidos vêm justamente deste fascínio pelas formas das rochas, em quem os gregos deram o nome de Mineralogia. O primeiro estudo escrito é do filósofo Theophastus (372-287 a.C.) e longo foi o percurso até chegar em 1773, quando o mineralogista francês Rome de I’Isle confirma a teoria de Nicola Steno em que existe relações fixas entre os ângulos e faces de um cristal natural de um mesmo composto. Assim, sem nem mesmo possuir ferramentas para caracterização química, era possível definir os componentes de um veio rochoso in loco, bastando ter um compilado de minerais já conhecidos pelos cientistas. A primeira compilação desse tipo foi  De Re Metallica, feita na Alemanha, por de Georgius Agricola. Ao longo dos anos muitos outros minerais foram descobertos e os compilados atualizados. Hoje em dia são conhecidos mais 2000 minerais naturais, muitos outros sintéticos, e alguns de origem extraterreste inclusive.

Analisando faces de cristais veio talvez o maior chute da história da química, no sentido de tentar adivinhar algo, com o caso do ácido tartárico. Trata-se de uma molécula quiral que se cristaliza nos barris de fermentação de vinho muito estudada no século XIX. Jean Baptiste Biot, pouco após a decadência de Napoleão, verificou que este material podia ser recristalizado e gerava alguns cristais diferentes do mesmo composto, mas que podiam polarizar ou não a luz que passava por eles. Alguns anos mais tarde, Louis Pasteur (o mesmo que surgiu com o método de pasteurização dos alimentos e outras invenções importantes), observando melhor estes cristais, notou que as faces menores de alguns que estavam voltados direita e outros esquerda e eles formavam um par de cristais espelhados. Ainda mais impactante foi sua surpresa ao notar que ao iluminá-los com luz previamente polarizada havia um desvio também para direita e para a esquerda, respectivamente. Daí vem o chute! Pasteur cravou que o cristal destrógeno, ou seja, que desvia a luz para a direita, tinha o grupo OH no primeiro carbono também para direita e o contrário para o cristal levógeno. Toda a esteroquímica da época se baseou nesta correlação para determinação da estrutura molecular. Poderíamos viver em um mundo químico invertido se Pasteur tivesse chutado errado. Hoje se sabe que não há relação com o esqueleto carbônico com o desvio de luz, tendo também relatos de moléculas destrógenas com grupos de maior prioridade à esquerda e vice-versa.

Quase um século mais tarde, agora já com o advento das técnicas de difração de raios X, uma química atuou para revolucionar a biologia. Rosalind Franklin fez o que hoje em dia é difícil nos precários anos 1950: cristalizar macromoléculas. E quando cito macromoléculas são compostos com mais de 300.000 átomos, como o ácido desoxirribonucleico, ou o famoso ADN (tradução da sigla DNA obrigatória nos textos em português). Ela teve papel fundamental no entendimento da estrutura tridimensional do ADN, juntamente com Maurice Wilkins, porém os louros do trabalho são creditados a Watson e Crick – e eventualmente Wilkins quando se lembra que ele também dividiu o Prêmio Nobel. Mas ela não foi só atuante no caso do ADN que foi revolucionário. Em seu outro caso de sucesso, esse menos memorável, mas tão importante quanto, ela atuou na cristalização de vírus. Isso mesmo, vírus! Nós vemos criaturas vivas como uma entidade, algo superior, porém quimicamente são um conjunto de moléculas encapsuladas dentro de uma membrana vivendo fora do equilíbrio químico, cujas reações na busca por este equilíbrio que nunca é atingido se chama vida. E, portanto, um conjunto de moléculas pode ser cristalizada. No caso dos vírus é mais simples, pois é uma capsula proteica, com material genético dentro e algumas outras unidades simples. Rosalind começou com um vírus que ataca a planta do tabaco. Ela conseguiu determinar que este vírus tinha a forma cilíndrica com o material genético, no caso RNA, em fita dentro deste tubo. Trabalho pioneiro que hoje em dia ajuda a entender como é a interação dos vírus com seus hospedeiros em nível molecular, como evitar contaminação e até mesmo criar remédios que os combatam. E com uma recente pandemia você pode estar se perguntando sobre o Sars-Cov-2. Sim, assim como Rosalind buscou cristalizar e estudar os vírus da poliomielite que açoitava a humanidade naquela época, muitos cientistas já determinaram a estrutura cristalina do vírus causador da COVID-19.

Do misticismo à ciência os cristais têm muito poder, alguns para os que creem, outros para os que olham com olhar crítico sabendo o que buscar. Foi longa a jornada dos cristais, tendo atualmente duas vertentes bem separadas uma da outra, mas não há dúvida que ainda há muito o que se descobrir usando os cristais. Basta olharmos para trás que os veremos fazendo parte de várias revoluções científicas ao longo da história. Agora olhamos para o futuro, usando os cristais como lentes para vislumbrar um futuro cheio de descobertas.